domingo, 22 de junho de 2014

Canabidiol e epilepsia: usar ou não usar?

Canabidiol e epilepsia: usar ou não usar?

Texto compilado por Maria Carolina Doretto
Presidente da EPIBRASIL – Federação Brasileira de Epilepsia


Parte 1: O uso do canabidiol no tratamento de epilepsias graves de difícil controle
Nunca na história recente houve tanto interesse e discussão pública sobre o uso potencial da maconha (Canabis sativa e Canabis indica) e de um de seus princípios ativos, o canabidiol (CBD) no tratamento de várias condições neurológicas tais como dor crônica e esclerose múltipla e ultimamente para o tratamento de epilepsias refratárias e as chamadas epilepsias catastróficas tais como a síndrome de Dravet, de Rett e de Lennox-Gastaut. Pacientes e familiares no mundo todo perguntam a seus médicos se este é um tratamento que pode ser utilizado e pais de crianças com epilepsias graves alimentam a esperança de ver seus filhos socorridos pelo CBD, a exemplo do que ocorreu no caso Charlotte Figi, nos Estados Unidos e de Anny em Brasília - DF. Charlotte apresentava crises prolongadas de status epilepticus, crises tônico-clônicas generalizadas e crises mioclônicas, totalizando mais de 50 crises por dia. Ela foi diagnosticada com síndrome de Dravet, uma doença associada a mutação genética,  Recebeu todos os tratamentos farmacológicos possíveis e dieta cetogênica sem resultados. Anny sofre de síndrome de CDKL5, uma variante da síndrome de Rett, com crises epiléticas frequentes e de difícil controle, causada também por mutação genética. Apresentava 60 convulsões por semana e nenhum tratamento foi efetivo. Estas duas crianças foram tratadas com CBD com excelentes resultados. Charlotte, após 29 meses de tratamento, apresenta 2 ou 3 crises tônico-clônicas generalizadas noturnas por mês, alimenta-se por via oral – por si mesma, dorme tranquilamente a noite toda e seus comportamentos autistas (auto-mutilação, agressividade, comportamento de auto-estimulação, pobre contato visual e pobre interação social), também melhoraram. Ela voltou a falar e a andar. Anny também melhorou. Recuperou a fala e a atividade motora e passou a ter 3 crises por semana. Corroborando os achados clínicos verificados nestas crianças, recente consulta feita com pais sobre o uso do CBD mostrou que para a maioria dos filhos com síndrome de Dravet houve uma redução de mais de 80% das crises, melhora nos níveis de atenção e não foi relatado nenhum efeito colateral grave. Alguns relataram tontura e fadiga.

Parte 2: Porque utilizar os derivados da maconha para tratar epilepsia? 
A Canabis sativa tem uma longa história de uso na medicina, com os primeiros documentos datados de 4000 A.C., na China, para o tratamento de reumatismo, dor e convulsões. De fato, a canabis esteve disponível em farmácias nos Estados Unidos para tratar várias doenças até 1941, mas depois seu uso foi suspenso e tornou-se ilegal em 1970. Alguns poucos relatos de caso sugerem atividade anticonvulsivante para o D9-tetrahidrocanabinol (THC), mas os efeitos colaterais psicotrópicos limitaram seu uso (4, 5). Em 1973, o Professor Elisaldo Carlini (6), um pesquisador brasileiro, demonstrou pela primeira vez, em animais de laboratório, os efeitos anticonvulsivantes do CBD, sem qualquer toxicidade e ausência de efeitos psicotrópicos. Em 1980, Cunha e colaboradores (7) realizaram um estudo controlado em 15 pacientes que receberam CBD ou placebo, além das medicações que já tomavam. Quatro de 8 pacientes ficaram “quase livres” de convulsões, 3 demonstraram “melhora parcial” e um dos 8 não apresentou melhora. No grupo placebo somente um paciente mostrou melhora nas crises.  Pesquisas em animais de laboratório têm proporcionado fortes evidências em relação à segurança e às propriedades anticonvulsivantes do CBD. Entretanto, a falta de compostos puros, farmacologicamente ativos e as restrições legais têm dificultado as pesquisas clínicas em seres humanos e os dados sobre o uso têm ficado restritos a relatos isolados. 
Parte do desafio em compreender porque a maconha apresenta efeitos aparentemente contraditórios em epilepsia, deve-se provavelmente à complexidade da própria planta. A Cannabis sativa tem 489 constituintes conhecidos (1) 70 dos quais são canabinóides e o restante inclui substâncias que são potencialmente neuroativas e que são capazes de atravessar a barreira hemato-encefálica. A estrutura química do THC e do CBD foram determinadas em 1963 (2) Estes dois derivados da maconha têm atraído grande interesse na pesquisa como terapias potenciais para a epilepsia. Relatos isolados e circunstanciais, também chamados de “anedóticos” em seres humanos sobre o uso do CBD em pacientes com síndrome de Dravet e de Lennox-Gastaut (3) foram realizados com produtos contendo primariamente CBD, frequentemente com uma alta proporção CBD:THC, da ordem de 20:1. Baseado no sucesso do caso de Charlotte, foi criada nos Estados Unidos uma organização sem fins lucrativos para encaminhar as necessidades de outros pacientes com síndromes epilépticas catastróficas para ajudá-los a ter acesso a uma maconha de alta qualidade, testada em laboratório, com alto conteúdo de CBD. Mais de 200 pacientes estão sendo tratados desde o início de 2014. Entre os canabinóides, o CBD puro parece ser um ótimo candidato para ser utilizado em pacientes com epilepsia refratária. A ausência do THC e, portanto, dos riscos associados ao uso de maconha em crianças e jovens (8, 9) e seu excelente perfil de segurança em humanos bem como sua eficácia em estudos pré-clínicos sugerem que o CBD pode ser uma droga segura e efetiva para tratar epilepsia.


Parte 3: Porque não utilizar os derivados da maconha para tratar epilepsia?
Embora algumas linhagens de maconha com alta proporção CBD:THC estejam sendo usadas, o THC é mais potente que o CBD, de modo que baixas doses de THC podem provocar efeitos adversos, especialmente em crianças pequenas. Recentes estudos sugerem que a canabis tem efeitos adversos em crianças com menos de 15 anos, incluindo risco de psicose (10) e em longo prazo impedimento de funções executivas (11). Pacientes, famílias e a comunidade médica precisam de dados objetivos e inequívocos sobre a segurança e eficácia para aprovar uma nova droga para tratamento da epilepsia. Para isso, é preciso definir o perfil químico de uma droga ou produto botânico. Os dados disponíveis da “maconha medicinal” não preenchem estes critérios (12). Além disso, dados adequados da farmacocinética são necessários para recomendar as doses e identificar as interações com as drogas antiepilépticas e outras medicações que podem causar toxicidade e impedir a eficácia. Embora muitas novas medicações tenham sido aprovadas nos últimos 15 anos, ainda existe uma desesperada demanda não atendida. As pesquisas clínicas com o CBD em epilepsia têm ficado limitadas pelas restrições legais do uso de compostos derivados da canabis. Embora o CBD pareça não apresentar as propriedades psicoativas associadas com o THC, leis americanas e brasileiras proíbem o seu uso. Paradoxalmente, a maconha com o THC, está disponível em um terço dos estados americanos para uso médico e há muitos outros estados avaliando legislação para aprovar o uso médico da maconha. Este uso está também permitido no Canadá e em países europeus, como a Holanda. Entretanto, a falta de regulamentação e de padronização pela indústria, levanta o questionamento sobre a composição e consistência dos produtos que são dispensados. A maioria dos pais utilizam extratos de canabis adquiridos de produtores. Estas preparações artesanais podem conter diferentes porcentagens de CBD e de THC, bem como, muitos outros canabinóides e outros compostos.  A concentração dos canabinóides pode variar dependendo da planta, do solo, e de outros fatores. Por exemplo, as plantas cultivadas por um produtor pode ter quantidades diferentes de CBD em relação ao outro produtor, que cultiva em outra área. Há ainda variação para o mesmo produtor, porque os nutrientes do solo, agentes patogênicos que atacam as plantas e muitos outros fatores podem variar, mesmo dentro da mesma área de cultivo. Pacientes e familiares podem tentar extrair compostos da planta da maconha, mas isto não deve ser feito. Relatos “anedóticos” dão conta de graves intoxicações de extratos obtidos com manteiga. Além disso, a crença de que tratamentos derivados de produtos naturais são seguros e efetivos é comum, mas potencialmente perigosa. Por exemplo, a tetrodotoxina, um bloqueador natural de canais de sódio produzida por peixes, vermes, caranguejos e outros animais, é 100 vezes mais letal que o cianeto de potássio. 

Parte 4: Conclusão
A epilepsia pode provocar danos ao cérebro, especialmente durante o desenvolvimento, frequentemente associados a comorbidades psiquiátricas, cognitivas e comportamentais que podem prejudicar gravemente a qualidade de vida (13,14, 15, 16). Epilepsia refratária com início antes dos 3 anos de idade está associada com QI baixo (17). Em crianças mais velhas e em adultos, epilepsia é também um distúrbio grave, com várias comorbidades, incluindo estigma, estilo de vida restritivo, distúrbios cognitivos e psiquiátricos, lesões físicas e mortalidade devido a morte súbita, afogamento, acidentes e suicídio. Portanto, é compreensível que pacientes, pais e familiares estejam interessados na “maconha medicinal” para tratar epilepsia, particularmente com o aumento dos relatos anedóticos dos dramáticos benefícios. O primeiro passo seria a investigação sistemática do CBD ou de outros compostos ou produtos como potencial tratamento para a epilepsia. É importante que fique claro que o CBD não é sinônimo de maconha. O CBD, isoladamente, é uma substância muito segura, sem potencial de abuso. A substância mediadora dos efeitos de abuso da maconha é o THC. O fato de que maconha é droga de abuso não é argumento para proibir o CBD. Da mesma forma, o fato de que o CBD tem aplicações medicinais não é argumento para dizer que fumar maconha é bom. O CBD, de fato, pode ser útil para determinados pacientes com epilepsia. No entanto, para que ele seja utilizado de forma mais ampla, são necessários mais estudos clínicos comparando-o com outros anticonvulsivantes, mas, infelizmente, as restrições legais têm impedido tais estudos. É importante também ressaltar que a luta de pacientes e de familiares pela aprovação do CBD medicinal para o tratamento das epilepsias de difícil controle não tem nenhuma relação com o movimento daqueles que incentivam o uso recreativo da maconha. 
A revista Epilepsia, especializada em publicações científicas, na seção Controvérsias em Epilepsia, está apresentando uma série de artigos e promovendo o debate sobre o uso da “maconha medicinal” e do CBD no tratamento de epilepsia de difícil controle (18, 19, 20). Está também realizando uma enquete com o público em geral.  A elaboração deste texto foi baseada principalmente no debate apresentado por esta revista.

Dando prosseguimento às informações sobre o uso do canabidiol (CBD) para o tratamento de epilepsia, realizamos uma busca na internet para reunir os links de alguns debates que estão acontecendo na mídia, em várias cidades brasileiras.

Para ficar mais fácil para você que deseja se informar sobre o tema, estamos disponibilizando uma relação de links:

29/07/2014 – Programa Bom Dia Paraíba - Pais é mães fazem petição para liberar uso do canabidiol 

27/07/2014 - Anvisa já liberou 18 pedidos de canabidiol

18/07/2014 - JORNAL DA EPTV 1ª EDIÇÃO - RIBEIRÃO PRETO - Pesquisadores da USP querem ampliar estudos com canabidiol


16/07/2014 - Uso do canabidiol em uma criança e novidades na evolução da medicação
16/7/2014 - Bom Dia Paraíba abre debate sobre o uso de medicamento derivado da maconha

16/05/2014 – Charlie Bravo Delta – 6 anos – Uso de CBD www.youtube.com/watch?v=62eDqPmc7Wo&feature=youtu.be

Beni - 07/05/14 - 8º dia de CBD - www.youtube.com/watch?v=rhFqoT66KBw&feature=youtu.be

Beni - 30/04/14 - 24 horas sem crise após 1ª tomada do CBD


Beni - 29/04 - 19:00h Primeiro CBD da vida


Beni - 17/06/2012 Convulsão focal mandíbula e língua


07/04/2014 – Encontro com Fátima Bernardes – Rede Globo - Pais comemoram a liberação do uso do canabidiol em tratamento da filha

30/03/2014 - Fantástico - Pais lutam na Justiça por liberação de remédio derivado da maconha


Palavras-chave: epilepsia, epilepsias refratárias, crianças, canabidiol, canabis, tetraidrocanabinol, maconha.

Referências bibliográficas

 1. Elsohly MA, Slade D. Chemical constituents of Marijuana: the complex mixture of natural cannabinoids. Life Sci 2005;78:539–548.

2.  Mechoulam R. The pharmacohistory of Cannabis sativa. In Mechoulam R (Ed) Cannabinoids as therapeutic agents. Boca Raton, FL: CRC Press Inc, 1986:1–19.

3. Porter BE, Jacobson C. Report of a parent survey of Cannabidiol-enriched cannabis use in pediatric treatment-resistant epilepsy. Epilepsy Behav 2013;29:574–577.

4. Donner EJ. Opportunity gained, opportunity lost: treating pharmacoresistant epilepsy in children. Epilepsia 2013;54 (Suppl.S2):16–18.

5. Berg AT, Zelko FA, Levy SR, et al. Age at onset of epilepsy, pharmacoresistance, and cognitive outcome: a prospective cohort study. Neurology 2012;79:1384–1391.

6. Carlini EA, Leite JR, Tannhauser M, et al. Cannabidiol and Cannabis sativa extract protect mice and rats against convulsive agents. J Pharm Pharmacol 1973;25:664–665.

7. Cunha JM, Carlini EA, Pereira AE, et al. Chronic administration of cannabidiol to health volunteers and epileptic patients. Pharmacology, 1980; 21:175–185.

8. Evins AE, Green AI, Kane JM, et al. Does using marijuana increase the risk for developing   schizophrenia? J Clin Psychiatry 2013;74:e08.

9. Mackie CJ, O’Leary-Barrett M, Al-Khudhairy N, et al. Adolescent bullying, cannabis use and emerging psychotic experiences: a longitudinal general population study. Psychol Med 2013;43:1033–1044.

10. Griffith-Lendering MF, Wigman JT, Prince van Leewen A, et al.Cannabis use and vulnerability for psychosis in early adolescence—a TRAILS study. Addiction 2013;108:733–740.

11. Fontes MA, Bolla KI, Cunha PJ, et al. Cannabis use before age 15 and subsequent executive functioning. Br J Psychiatry 2011;198:442–447.

12. Miller JW. Slim evidence for cannabinoids for epilepsy. Epilepsy Curr 2013;2:81–82.

13. Devinsky O, Vickrey BG, Cramer J, et al. Development of the quality of life in epilepsy inventory. Epilepsia 1995;36:1089–1104.

14. Donner EJ. Opportunity gained, opportunity lost: treating pharmacoresistant epilepsy in children. Epilepsia 2013;54 (Suppl. S2):16–18.

15. Evins AE, Green AI, Kane JM, et al. Does using marijuana increase the risk for developing schizophrenia? J Clin Psychiatry 2013;74:e08.

16. Berg AT, Zelko FA, Levy SR, et al. Age at onset of epilepsy, pharmacoresistance, and cognitive outcome: a prospective cohort study. Neurology 2012;79:1384–1391.

17. Mackie CJ, O’Leary-Barrett M, Al-Khudhairy N, et al. Adolescent bullying, cannabis use and emerging psychotic experiences: a longitudinal general population study. Psychol Med 2013;43:1033–1044.

18, . From the Editors: Cannabidiol and medical marijuana for the treatment of epilepsy, Epilepsia, **(*):1–2, 2014, doi: 10.1111/epi.12647

19. The case for medical marijuana in epilepsy *†Edward Maa and ‡Paige Figi, Epilepsia, **(*):1–4, 2014, doi: 10.1111/epi.12610

20. The case for assessing cannabidiol in epilepsy. *Maria Roberta Cilio, †Elizabeth A. Thiele, and ‡Orrin Devinsky, Epilepsia, **(*):1–4, 2014 doi: 10.1111/epi.12635

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